terça-feira, 27 de novembro de 2007

Edição Setembro de 1999
Índice

Existem muitas formas para se enfrentar o problema, mas todas levam o mesmo ingrediente: cidadania
Ricardo Prado

Ilustrações Fábrica de Quadrinhos
carro avança com dificuldade pelo labirinto tortuoso e esburacado da favela de Parada de Lucas, no subúrbio do Rio de Janeiro. A cada cinqüenta metros, o motorista repete a mesma pergunta: "Onde fica o Ciep Mestre Cartola?" A pergunta é útil e inútil ao mesmo tempo. Ele sabe exatamente onde quer chegar. A repetição serve para avisar os "soldados" do tráfico de drogas de que aquele carro desconhecido se dirige à escola. Funciona como um salvo-conduto nesse território explosivo e miserável, onde cabras passeiam entre poças de lama, procurando qualquer coisa para comer. Estamos em terreno dominado pela quadrilha chamada de Terceiro Comando; Vigário Geral, mais adiante, pertence ao Comando Vermelho. Entre as duas favelas fica a escola. Poderia ser mais um território marcado pela violência. Mas não é, e vale a pena investigar por quê.
O muro do Ciep Mestre Cartola revela sinais inequívocos de tiros. Mas vale mais pelo que oculta à primeira vista. Por trás desta barreira, descobre-se que a escola é limpa, abriga 600 alunos em período integral, nunca teve um aluno expulso e os professores, ao deixarem o prédio às 16h30, sabem que têm tempo suficiente para saírem ilesos da zona de conflito. À noite, a violência é de assustar. E já foi pior, quando as comunidades vizinhas de Vigário Geral e Parada de Lucas alimentavam uma feroz rivalidade. Ironicamente, foi a "Chacina de Vigário Geral", ocorrida no dia 18 de agosto de 1993, quando deixou um saldo de 21 mortos com idades entre 16 e 61 anos, que serviu para unir as duas favelas. O diretor do Ciep Mestre Cartola, Alberto da Silva, no cargo há oito anos, recorda que a cozinheira da escola perdeu o marido e a secretária teve seu irmão fuzilado. "Foi um trauma para todos", lembra. Naquela semana, os professores trabalharam os sentimentos dos alunos, que estavam com a auto-estima arrasada. De lá para cá, a cada ano, no mês de agosto, uma missa ecumênica é celebrada em memória dos mortos e a chacina vira debate na escola.
Aula na favela: coreografia rica, ritmo apurado e espírito crítico
Nunca se falou tanto de violência nas escolas como neste ano. Inclusive — e isso é uma boa notícia — dentro das salas de aula. O Ciep Mestre Cartola tem seus corredores tomados por cartazes pedindo paz e trabalha com seus alunos continuamente a idéia da convivência pacífica. A pedagoga Regina de Assis, ex-Secretária Municipal de Educação do Rio de Janeiro, ainda se lembra do dia em que recebeu o diretor Alberto em seu gabinete. Ele trazia um pedido insólito: queria que sua equipe não fosse modificada, pois estava fazendo um trabalho que começava a render frutos. "Uma equipe estável, com 5 a 8 anos de trabalho conjunto, é capaz de fazer verdadeiros milagres em qualquer escola", diz Regina. Milagres acontecem? O que faz um local como o Ciep Mestre Cartola, que teria tudo para ser terra de ninguém, virar um território livre da violência? A primeira lição do diretor Alberto é o espírito de equipe. Como um bom time de futebol, do entrosamento surgem belas jogadas, que "avançam pelas laterais" desta reportagem. Esta foi a melhor forma de tratarmos de vários exemplos sem deixarmos de perseguir uma idéia central. Sim, porque quando o tema é abrangente como este, existem grandes conceitos e pequenas soluções. E um reforça o outro.
Em 92, uma aluna da Escola Estadual Professor Renato Arruda, no Jardim Carumbé, Zona Norte de São Paulo, foi assassinada no pátio do colégio. O bairro, um dos mais violentos da cidade, é semi-urbanizado, cercado por três favelas. Até dois anos atrás, a escola apresentava o quadro esperado de um ambiente marcado pela violência: vidros quebrados, muros pichados e "toque de recolher" no curso noturno, quando telefonemas anônimos ameaçavam lançar bombas caso as aulas não fossem interrompidas.
Sala-ambiente de educação artística: distribuição das carteiras facilita a sociabilização
Hoje, quem entra nas salas da escola se surpreende com a beleza e a criatividade delas. Não há mais vidros quebrados nem pichações. Os problemas não sumiram, o bairro não ficou mais rico — pelo contrário, com o desemprego aumentou a violência. Mas a escola está preservada. O que houve? Com seu jeito despachado, a diretora Eliana Bernardo de Mello provocou os pais insatisfeitos para que expusessem as falhas da escola e o que esperavam dela. "Se vocês ajudarem, podemos ter a escola que vocês querem", teria dito. E feito.
Abrir a escola para a participação da comunidade dá certo, diminui a violência, mas não é fácil. "Não basta liberar a quadra nos finais de semana. Aí está acontecendo a abertura física do prédio, não a abertura da instituição", lembra a professora Marília Sposito, da Faculdade de Educação da USP. "O primeiro passo para quem quer enfrentar a violência é fazer um diagnóstico das carências e necessidades daquela escola específica. Da análise parte-se para se repensar o uso de cada espaço", sugere. Ela lembra que todos os espaços de uma escola são educativos: o corredor, o pátio, a quadra e até a saída da escola. Em Belo Horizonte, um grupo de alunos da Escola Municipal Maria Mazarello deu um exemplo, com um vídeo caseiro, de como refletir sobre o espaço onde a violência acontece. "De nada adianta falar de direitos humanos em aula e os alunos se estapearem na fila da cantina", exemplifica Marília, que vem estudando o assunto desde bem antes dos jornais alardearem a recente "explosão de violência nas escolas".
Antes de aceitarmos a tese da "explosão", cabe uma pergunta: nossas escolas estão, de fato, mais violentas? As estatísticas são contraditórias. Renato Meirelles, da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), coordenador da campanha Sou da Paz, alardeia que "um estudante é morto a cada dia letivo, dentro da própria escola". Este dado soa amedrontador, mas revela-se precário quando se descobre que foi feito a partir de notícias de jornais. Não existe um cruzamento de informações que permitam tirar uma radiografia do problema no país. Se nos concentrarmos apenas na cidade de São Paulo, a cada 777 homicídios, um ocorreu dentro da escola este ano. Isto representa 0,13% do total. A cifra é pequena. Mas é inaceitável. Principalmente porque, contra as quatro mortes ocorridas este ano dentro de escolas, de um total de 3 110, segundo dados da Polícia Militar, houve apenas uma no ano passado, o que indica uma tendência de crescimento.
O problema não são os números. O ponto pacífico, fora de discussão, é que a escola jamais deve ser um lugar onde um estudante corra risco de vida. "Os índices de violência estrita nas escolas, mesmo sendo baixos, geram uma repercussão tremenda. É como se existisse um lacre de inviolabilidade da escola no imaginário popular", analisa Julio Groppa Aquino, professor de Psicologia da Educação da Faculdade de Educação da USP. Quando a crença de que a escola seja um local absolutamente seguro é colocada em dúvida e se soma ao sentimento de insegurança já instalado na população, cada ocorrência tem um efeito multiplicador.
A insegurança tem bases concretas: dentre todos os países do mundo, o Brasil só perde para Colômbia e Venezuela em mortes violentas, segundo a Unesco apurou em 99. Os estudantes têm consciência disso, muitos já sofreram violência e querem entender melhor o que se passa. A Fundação Osvaldo Cruz entrevistou 1220 estudantes cariocas e 92% querem que o tema "violência" seja discutido em sala de aula.
"Já existe um consenso de que o policiamento, por si só, não vence a violência", avalia Marília Sposito, indicando a necessidade de saídas pedagógicas. Quando três bombas explodiram na Escola Municipal Zacaria, localizada próximo ao Jardim Ângela, o bairro mais violento de São Paulo, o diretor Roberto Wagner Carbonieri contornou a situação gastando nada mais que saliva e astúcia.
Muitas vezes a saída "pouco ortodoxa" é inevitável. Quando foi aberto o curso noturno na Escola Municipal Santa Luzia, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o odor de maconha e o tráfico tomaram conta do lugar. O diretor José Carlos Wandermurem, depois de tentar ajuda junto às autoridades, conforme contou em depoimento publicado na Nova Escola de abril de 96, identificou os líderes e chamou-os para um diálogo franco. Não importava o que eles faziam fora do colégio, mas uma denúncia poderia fechar o curso noturno, antiga reivindicação do bairro de Nova Campina, palco, em 4 de junho, da mais recente chacina na Baixada, com 26 pessoas metralhadas na vizinhança da escola. O recado foi entendido e o tráfico sumiu. "Quem cai na marginalidade também tem filhos ou sobrinhos e entende que a escola é o único jeito de eles não seguirem o mesmo destino. Ele respeita a escola e os professores", assegura Alberto Silva, aquele diretor do Ciep de Vigário Geral.
Se há uma explosão inquestionável nas escolas é a dos hormônios no corpo dos adolescentes. Ela também é responsável por muitas das brigas ocorridas nos intervalos. O Recreio Orientado da Escola Classe do Varjão, do Distrito Federal, além de sugerir um modo produtivo e positivo de se encarar o momento de lazer, estimula a formação de lideranças entre os alunos. Daí para o grêmio estudantil será um pequeno, mas importante, passo. Escolas bem-sucedidas na luta contra a violência estimulam a formação de grêmios, "a primeira experiência de cidadania do estudante", lembra Renato Meirelles, da Ubes.
A chacina feita em abril deste ano por dois estudantes do Colorado, nos Estados Unidos, quando 12 colegas e um professor foram assassinados, acendeu um fósforo no ambiente inflamável criado pela exclusão social no país. Novos casos de violência, desta vez com nossos alunos, levaram mídia e opinião pública a exigir soluções de curto prazo.
Em momentos como este é grande a tentação de se encontrar saídas de forte apelo popular, mas pouco eficazes. Uma delas é a presença de policiais disfarçados entre os estudantes, para detectar gangues e tráfico de drogas. "Esse tipo de medida é anti-educativa. Ela pode quebrar a confiança dos alunos na escola", alerta o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa, consultor do Instituto Ayrton Senna e da Fundação Odebrecht. Ao se quebrar a relação de confiança de estudantes com a escola, as perdas são incalculáveis. A saída talvez esteja, justamente, no oposto. Confiança é a moeda de troca que deve vigorar entre os muros da escola. "É preciso encarar o jovem como parte da solução, não do problema", sintetiza Costa.
Piscina em escola pública: o esporte criou para os jovens do Morro da Mangueira uma relação sadia com o estudo
A violência também pode acontecer por iniciativa da própria escola. Tome-se um exemplo. No Ciep Nação Mangueirense, no Rio de Janeiro, a diretora Terezinha Labruni lembra-se de quando surgiram os primeiros alunos portando walkman. A direção decidiu proibir o uso. Os alunos reclamaram, achando que durante o recreio tinham o direito de ouvir música, já que não estavam incomodando ninguém. "Fomos muito rigorosos e voltamos atrás, permitindo o walkman no intervalo", reconhece Terezinha. Justamente quando a diretora fazia seu mea culpa diante da reportagem, um aluno lançou um papel de bala ao chão. Terezinha deu-lhe uma pequena descompostura, encerrada com um abraço carinhoso. Negociando direitos e deveres, ela ensina seus alunos a serem cidadãos, o que significa, entre outras coisas, saber ouvir o outro lado e cuidar da escola de todos.
Cuidados com a escola podem ser despertados por uma peça de teatro, como aconteceu com a Escola Estadual Padre Palmeira, na Bahia. Pode-se fazer também como o Cefam Butantã, escola pública da cidade de São Paulo de Ensino Fundamental e Magistério. A cada ano eles elaboram as Normas de Convivência, em conjunto com os alunos. Debatida em assembléia, todos aprovam e assinam o contrato e podem ser devidamente cobrados por eventuais transgressões.
O que vale na relação aluno-escola, vale também dentro da sala de aula. "Precisamos ficar atentos a outro tipo de violência que acontece na escola, a de ordem simbólica. Quando se ouve o lado de um aluno punido pelo professor ou pela direção, muitas vezes percebe-se que ele foi injustiçado", comenta Júlio Aquino. Atitudes preconceituosas, ofensas à inteligência e tratamento desigual ferem a auto-estima do aluno, que tende a reagir de forma violenta à exclusão, seja contra o professor, seja contra o prédio.
Ameaças e agressões verbais e físicas, além do desinteresse, revelam um quadro de confronto também na sala de aula. "Esse tipo de violência não é causa, mas efeito do desgaste que vem sofrendo a relação professor-aluno", analisa Aquino, para quem o mais importante é estabelecer regras de convivência claras desde o início do trabalho. Antonio Carlos destaca o papel do professor no desenrolar desse nó. "O bom professor sabe trocar com o aluno", diz o pedagogo. E exemplifica: "são coisas simples, como um gesto, um cumprimento, um conselho; esse comércio de ‘pequenos nadas’, que muitas vezes o aluno não tem na sua família, muda a qualidade de vida em qualquer ambiente, seja no trabalho, em um hospital ou na escola".
Já foi dito aqui que todos os espaços de uma escola são educativos. Então, a boa manutenção do prédio é outra frente de combate à violência escolar, às vezes negligenciada por professores e diretores. A lógica é a mesma adotada pela administração do Metrô de São Paulo, que faz a imediata substituição de qualquer objeto quebrado em trem ou estação. Um ambiente depredado abre caminho para o vandalismo; um local preservado breca. A peça Cuida Bem de Mim, vista na Bahia por mais de 100 mil estudantes, usou a arte-educação para reforçar o vínculo dos alunos com o lugar onde estudam. Na mesma linha de atuação, a Escola Classe 18, de Taguatinga, DF, tirou do programa Você Decide, exibido pela Rede Globo, a idéia de seus alunos optarem entre reeducar uma aluna-problema ou expulsá-la. A peça fez parte de um projeto maior, o Encontro com a Paz. É assim, envolvendo a escola em atividades lúdicas e educativas, que muitos professores e diretores vêm apostando no trabalho preventivo, antes da violência armar o bote.
Os Pelotões da Paz cuidam de integrar quem está deslocado nas oficinas e brincadeiras do intervalo. Em caso de briga, eles formam a "turma do deixa-disso"
Também é opção preferencial pela cidadania o que fez o Indac, colégio de classe média alta de São Paulo, ao punir um aluno pichador com a tarefa de criar uma campanha publicitária pela limpeza na escola — além de fazer a limpeza do muro. Ou o Mater Amabilis, particular de Guarulhos, São Paulo, que trocou 1600 armas de brinquedo dos alunos por livros. O Caic Maria Felício, uma escola pública que tem até orquestra de câmara, vem se tornando o pólo cultural do bairro Castelo Encantado, em Fortaleza. Experiências como essas vêm acontecendo em todo o país, embora não surjam nas reportagens que anunciam "explosões de violência" nas escolas. As iniciativas aqui contempladas, e centenas de outras ainda anônimas, apontam para a mesma saída: trazer a criança para passar a maior parte de seu tempo dentro da escola, reforçando em todas as oportunidades e espaços a idéia da cidadania — o aluno pertence a uma comunidade escolar, que se mistura à comunidade de seu bairro e ao espaço familiar. Apoiado neste tripé ele aprenderá, em lições práticas, o que significa cidadania. Se a violência do dia-a-dia invadiu a escola, não há dúvida de que a paz na sociedade só virá por meio da educação de seus cidadãos. E, nesta guerra, um bom professor ensinando como se convive em paz com a diferença vale mais que um batalhão de policiais bem armados.
_________________________________________________________________________________Colaboraram: Roberta Bencini (SP) e Cristina Ávila (DF).
Trabalho de mestre na periferia
Revolução pacífica em dois anos
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Reação orquestrada contra a violência

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